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Inteligência artificial generativa e a inevitável mudança do Poder Judiciário: não é apenas sobre tecnologias, mas também sobre força de trabalho



1. Uma viagem no tempo: o Judiciário em 2028

O ano é 2028. O uso da inteligência artificial generativa, doravante IA no presente artigo, já é difundido em gabinetes, secretarias e áreas administrativas dos Tribunais. Após diversos debates (e embates) institucionais e doutrinários, chegou-se a uma certa pacificação sobre o uso dessas ferramentas pelo Judiciário. 

Em 2028, já é aceitável que minutas de sentença e de despacho, relatórios e decisões administrativas, bem como triagens e gestão dos processos nas secretarias sejam feitas com o auxílio da IA. Com isso, o tempo necessário para a execução de boa parte das tarefas jurisdicionais e administrativas diminuiu consideravelmente. 

Em 2028, Juízes e alguns assessores de gabinete são destacados para trabalhar qualitativamente em demandas complexas, enquanto a IA se encarrega de auxiliar diretamente na vazão dos acervos menos complexos ou mais padronizáveis (repetitivos). Outros servidores, das mais variadas áreas, são destacados para acompanhar a gestão dos processos de massa, aplicando jurimetria em análises estatísticas do comportamento processual, sempre com auxílio da IA. 

Em 2028, o que antes era escassez, agora se tornou abundância: diversos servidores que não acompanharam as mudanças encontram-se obsoletos e com poucas ou nenhuma atividade a desempenhar. Os Tribunais, então, correm contra o tempo para adaptá-los a novas funções sem que isso implique desvios de cargo a que é inerente. 

Não, isso não é um resumo de alguma obra futurista de William Gibson, autor de Neuromancer, mas uma tendência natural que está diante dos nossos olhos, embora possamos ter alguma resistência em reconhecê-la como algo mais iminente do que parece.

Isso pode ou não acontecer, obviamente. O futuro pode ser exercício de “loteria”, quando não respaldado em elementos. Mas também pode ser encarado como tendência, quando os sinais do presente já apontam a direção do futuro. E é justamente sobre isso que passarei a tratar no presente artigo.


2. Os sinais de que estamos mudando: ferramentas de IA atuais e a tendência de ampliação do uso no Judiciário

O Conselho Nacional de Justiça e diversos Tribunais do país têm trabalhado no desenvolvimento de tecnologias baseadas em inteligência artificial generativa, citando-se como exemplos (não exaurientes) o JurisprudênciaGPT (TJPR), o ApoIA (TRF2) e o Assis (TJRJ). Para mais informações sobre iniciativas de IA no Poder Judiciário, o leitor pode consultar a Plataforma Sinapses, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Em síntese, as tecnologias desenvolvidas pelos Tribunais atualmente executam tarefas relacionadas a resumos, relatórios, triagens, reconhecimento de padrões, dentre outros, encontrando-se em franca expansão e ampliando sobremaneira o ambiente cooperativo entre Tribunais, inclusive com cessão de uso e acesso por meio da PDPJ.

Por um lado, observamos que os projetos e as iniciativas institucionais começam a se multiplicar. Contudo, restrições orçamentárias, de infraestrutura e de outros fatores não impedem o uso privado de IA por magistrados e servidores, ou seja, não é possível, nesse momento, que os Tribunais forneçam as ferramentas que o mercado fornece em IA Generativa (e que acabam sendo utilizadas na falta de equivalente desenvolvido institucionalmente).

Isso foi confirmado pelo Relatório de Pesquisa sobre o uso da IA Generativa no Poder Judiciário, recentemente publicado pelo CNJ, em que magistrados e servidores admitem já terem feito uso de IA Generativa em suas rotinas de maneira privada, a maioria, como era de se esperar, usando o ChatGPT.

É inexorável concluir que, de uma forma ou de outra, muitos juízes e servidores já fazem uso das ferramentas, razão pela qual é necessário suprir o vácuo atual com regulamentos e diretrizes que resolvam eventuais crises de insegurança no uso de tais aplicações no dia a dia, tanto para os profissionais quanto para as instituições e, por conseguinte, do próprio jurisdicionado.

A atual Resolução nº 332/2020 do CNJ tem sido objeto de revisão por grupo de trabalho criado pelo atual Presidente do Conselho. Após a primeira versão do documento, compartilhado de maneira elogiável e transparente pelo grupo, observam-se tendências de que o texto trará ressalvas e requisitos para a utilização segura das IAs de maneira privada pelos juízes e servidores. Nesse sentido, o Conselheiro do CNJ, Luíz Fernando Bandeira de Mello, afirma que “Daí se evoluiu para uma posição de liberdade controlada: fica definido aquilo que será exigido para uso de sistemas mediante licença privada (capacitação, não-compartilhamento de dados para treinamento, restrições a dados protegidos, supervisão humana e uso apenas em situações definidas como de baixo risco). Atendidas essas condições, o magistrado ou servidor poderá adquirir licença para uso de solução privada de IA generativa, desde que informe à sua corregedoria para fins de acompanhamento”.

Dito isso, a tendência é que a nova resolução autorize o uso privado de IAs Generativas por juízes e servidores, desde que sejam capacitados, alterem a configuração padrão das ferramentas de mercado para que não utilizem os dados para treinamento, que dados sensíveis jamais sejam veiculados (quando assim, devam ser anonimizados), que sempre haja supervisão humana (conferência) e que atendam a situações de baixo risco, conforme critérios estabelecidos na novel normativa.

Em suma, há o reconhecimento de que, enquanto os Tribunais não desenvolvam soluções próprias, será autorizado o uso de IA por magistrados e servidores de maneira privada, observados diversos requisitos, dentre eles e especialmente, de que tais profissionais sejam capacitados para tanto.

Temos que a mudança na forma como trabalhamos já começou. Sim, já começou. É impossível não reconhecer que juízes e servidores que passam a fazer uso (responsável) de IA terão melhor performance que aqueles que não usam. A ideia do presente artigo não é entrar em discussões filosóficas, éticas ou sobre a qualidade do trabalho utilizando-se IA, pois caberia artigo próprio para tanto. Aqui a ideia é ser pragmático: se um profissional faz uso de uma ferramenta que inegavelmente amplia a produtividade, quem não faz uso não terá o mesmo desempenho.

Além disso, é inegável concluir que, em havendo aumento de produtividade, horas/trabalho/profissional disponíveis serão acrescidas. Isso implica reconhecer que ajustes deverão ser feitos no tocante à força de trabalho.

Isso sem mencionar que estamos muito próximos dos chamados agentes de IA, que são a evolução da IA Generativa que reproduzem agentes com maior autonomia na execução de tarefas (com menor necessidade de intervenção humana).

Logo, os impactos nas atividades intelectuais (inclusive) serão sentidos e isso representará em necessária revisão dos processos de trabalho, o que remonta à ideia sempre destacada do “ser humano no centro”.


3. Ser humano no centro: reflexão sobre aquilo que realmente deve ser alcançado com a aplicação das tecnologias

Um dos temas mais recorrentes que ouvimos em Congressos ou lemos em artigos publicados é a necessidade de que o ser humano seja considerado o centro em quaisquer das políticas que envolvam a aplicação de novas tecnologias. Nesse momento, portanto, quero ressaltar a importância de que tal valor seja observado no processo evolutivo que estamos presenciando no Poder Judiciário, notadamente considerando os prováveis impactos que serão sentidos por juízes e servidores com as mudanças na forma como trabalhamos.

Relatório do Fórum Econômico Mundial, em cooperação com a McKinsey, alerta expressamente sobre a necessidade de que setores públicos e privados observem as mudanças que estão na iminência de ocorrer. Nela, é possível observar a clara necessidade de que os trabalhadores em geral sejam requalificados para atender às novas exigências sociais, impactadas sobremaneira pelas tecnologias.

Logicamente, precisamos debater sobre os impactos na força de trabalho do Judiciário na mesma medida em que se discutem as aplicações das tecnologias, exigindo um esforço multidisciplinar e urgente. E não apenas sobre os servidores.

O juiz que no passado era “somente” o estudioso do Direito e decisor, com o tempo incorporou necessárias habilidades em gestão de gabinete e, agora, precisa acoplar aos seus conhecimentos e habilidades métodos criativos, tecnologias aplicáveis e gestão de IA. 

Aqui faço uma ressalva importante: a tecnologia, como ela é hoje, não pode ser considerada monopólio das áreas de tecnologia (TI). Isso porque as soluções baseadas em IA generativa são baseadas em absoluta medida nas regras e necessidades de negócio. O próprio uso prático de tais tecnologias, de tão próximas do usuário, já não depende em essência das áreas de TI. As ferramentas são tão intuitivas que o usuário faz uso “self-service” de muitas soluções. 

Obviamente não se está dizendo que não cabe à TI participar do processo, em especial na concretização das soluções de negócios e nos cuidados e orientações relacionadas à segurança da informação, mas sim que a área de negócios, juízes e servidores da área fim, devem ser protagonistas dessa mudança ao lado dos profissionais da tecnologia, num esforço conjunto e multidisciplinar. 


4. Cardápio de sugestões estratégicas para contornar os desafios

As preocupações e ressalvas feitas ao longo do presente artigo demandam posicionamento e soluções que devem ser consideradas em todo o Poder Judiciário, observadas as peculiaridades de cada um dos mais de 90 dentre Superiores, Regionais, Estaduais e Especiais.

Pensando nisso, resolvi finalizar meu trabalho com um resumo de possíveis soluções para os desafios que serão (e já estão sendo) enfrentados, dispondo-os num cardápio em formato de itens. Dada a limitação de caracteres para a publicação do artigo, ficarei restrito em apenas citá-los, de maneira que futuras publicações poderão explorar os detalhes e aplicações práticas das sugestões. Assim, são as seguintes sugestões:

a) políticas de letramento digital, capacitação, treinamento, consultoria recorrentes e permanentes, dado que as tecnologias se atualizam constantemente;

b) introdução de requisitos e exigências de atualização em tecnologias por todos juízes e servidores, inclusive como eventual critério para promoções ou progressões de carreira;

c) criação de Grupos de Estudo, Fóruns ou Congressos permanentes para discussão dos impactos da IA nos diversos ramos da Justiça: penal, administrativo, cível e etc; 

d) estimular o conhecimento por todos operadores do Direito sobre o conceito de “Fine-tuning” ou ajuste fino, a fim de estimular o aperfeiçoamento dos modelos atuais;

e) investir em espaços de construção coletiva de prompts (a grande essência de IA Generativa conversacional);

f) capacitar juízes e servidores, especialmente gestores, em técnicas de jurimetria;

g) capacitar juízes e servidores, especialmente gestores, em conceitos relacionados a pensamento computacional;

h) capacitar juízes e servidores, especialmente gestores, em métodos ágeis de gestão, especialmente OKR, scrum e kanban;

i) fomentar políticas de inovação, especialmente diante da necessidade de desenvolvimento de capacidades criativas, ou seja, aquilo que realmente nos diferencia das tecnologias.

Trata-se de uma lista não exauriente, baseada no método que separa diversos elementos intimamente ligados ao escopo do presente artigo com 4 pilares: inteligência artificial, aplicações, métodos ágeis e conceitos diferenciais.



CONCLUSÃO

Não sabemos ao certo o grau das mudanças, apenas que elas certamente acontecerão (como já acontecem nesse exato momento). Políticas de prevenção e estudos sobre o futuro com base em elementos do presente devem ser o guia da execução de ações junto aos Tribunais pátrios.

Com o presente artigo, não se busca assumir uma posição arrogante ou alarmista, mas apenas de humilde reflexão, com a intenção de que, com os apontamentos acima discorridos, possa contribuir com a construção do hoje visando o futuro.

Não devemos fazer perguntas à IA, mas dar comandos claros e objetivos. Na mesma medida, não devemos esperar que a IA resolva nossos problemas, mas construir na humanização dos processos as bases para que a IA seja mero auxiliar no processo.



APRESENTAÇÃO MÉTODO PRODUTIVIDADE JURÍDICA. Disponível em janeiro de 2025: https://www.vitordutraia.com/m%C3%A9todo-prod-jur

ASSIS: IA Generativa utilizada pelo TJRJ. Disponível em janeiro de 2025: https://www.tjrj.jus.br/magistrado/servicos/assis/o-projeto

GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008. 

JURISPRUDÊNCIAGPT: IA Generativa utilizada pelo TJPR. Disponível em janeiro de 2025: https://dtic.tjpr.jus.br/jurisprudenciagpt

LÉVY, P. O ciberepaço como um passo metaevolutivo. Revista FAMECOS, v. 7, n. 13, p. 59-67, 10 abr. 2008. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/download/3081/2357/ 

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2010. 

MELLO, Luiz Fernando Bandeira de Mello. Regulação do uso de IA no Judiciário: o que vem pela frente?. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/421264/regulacao-do-uso-de-ia-no-judiciario-o-que-vem-pela-frente

O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GENERATIVA NO PODER JUDICIÁRIO BRASILIEIRO. Disponível em janeiro de 2025: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/09/cnj-relatorio-de-pesquisa-iag-pj.pdf 

PLATAFORMA DIGITAL DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO (PDPJ-Br). Disponível em janeiro de 2025: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/plataforma-digital-do-poder-judiciario-brasileiro-pdpj-br/

RELATÓRIO FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL. Disponível em janeiro de 2025: https://reports.weforum.org/docs/WEF_Future_of_Jobs_2025_Press_Release_PTBR.pdf

SINAPSES: Plataforma Sinapses do CNJ. Disponível em janeiro de 2025: https://www.cnj.jus.br/sistemas/plataforma-sinapses.

 
 
 

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